sábado, 5 de abril de 2025

 

Algorítimo | Por Zilan Costa e Silva

Originados no século IX com Al-Khwarizmi, os algoritmos modernos, apesar de sua base matemática, perpetuam discriminações em áreas como policiamento preditivo, justiça, saúde e crédito. O texto alerta que esses sistemas refletem imperfeições humanas e defende a necessidade de transparência, auditoria e inclusão de vozes diversas em sua criação, visando tecnologias justas e equitáveis, livres de vieses estruturais.
Algoritmos, espelhos da humanidade na era digital.

A palavra algoritmo carrega em sua essência a história das civilizações e a memória de um matemático persa do século IX, Muhammad ibn Musa al-Khwarizmi, cujo nome, traduzido do árabe ao latim medieval como Algoritmi, eternizou-se como sinônimo dos procedimentos lógicos e sistemáticos usados para resolver problemas. Hoje, a palavra transcende seu significado original e se torna a base invisível sobre a qual se ergue nossa realidade digital, refletindo não apenas métodos matemáticos, mas também as escolhas éticas, sociais e políticas daqueles que os programam. Assim, cada algoritmo que molda o presente e o futuro da sociedade é uma janela para as virtudes e imperfeições humanas, espelhando em códigos os dilemas de nossa época.

Em um horizonte de névoas digitais, onde a realidade se desenha sob traços invisíveis de código, encontra-se o nosso tempo, suspenso entre a promessa da razão absoluta e o espectro das velhas injustiças, agora revestidas de algoritmos. Vivemos sob a crença na imparcialidade tecnológica, esquecendo que cada linha matemática, cada expressão lógica escrita em tela, carrega dentro de si sementes humanas, germinadas em terras férteis de histórias e preconceitos. Somos nós, humanos imperfeitos, que moldamos os algoritmos, esses espelhos obscuros que refletem nosso próprio semblante distorcido.

Acreditamos, talvez por conveniência ou inocência, que as máquinas libertariam o homem dos fardos da parcialidade, da corrupção moral que sempre nos acompanhou em nossas decisões. Mas eis que os algoritmos, filhos da razão matemática, herdam as imperfeições dos dados que lhes dão vida. Assim como o escultor que molda a matéria bruta imprime sua visão ao mármore frio, os cientistas de dados, engenheiros e gestores moldam seus códigos com valores implícitos, crenças inconscientes e visões do mundo que, embora invisíveis ao olho comum, persistem profundamente marcadas em sua estrutura.

Nas ruas das cidades, o algoritmo do policiamento preditivo mapeia o futuro olhando para o passado, e o passado está repleto de histórias de dor, discriminação e desigualdade. Aqueles bairros mais policiados, aqueles rostos mais frequentemente suspeitos, já eram suspeitos muito antes de nascerem os códigos preditivos. O que parecia uma promessa de segurança torna-se o reforço de um ciclo, perpetuando o preconceito racial, a pobreza e a violência simbólica sob o véu da eficiência tecnológica.

Nos tribunais, a balança da justiça algorítmica revela desequilíbrios profundos. Um código que deveria garantir imparcialidade é capaz de classificar réus segundo riscos calculados, muitas vezes com base em critérios cuja neutralidade é apenas aparente. A cor da pele, o CEP de origem, a classe social transmutam-se em variáveis ocultas que perpetuam as desigualdades históricas, disfarçando sob a frieza numérica uma injustiça que se perpetua através dos tempos.

As redes digitais, outrora celebradas como praças públicas universais, agora aprisionam os indivíduos em bolhas de informação. Alimentados por algoritmos que visam o engajamento, vemos surgir um mundo fragmentado, dividido entre realidades paralelas que se reforçam mutuamente sem jamais se confrontarem. Cada clique, cada “curtida”, cada visualização se converte em um tijolo a mais nos muros que nos separam, elevando a polarização política ao extremo, ameaçando a própria capacidade de diálogo democrático. A máquina não faz distinção entre verdade e mentira, entre equilíbrio e extremismo; ela apenas otimiza números frios, indiferente às consequências que geram na vida real.

Mesmo nas questões mais íntimas, como a saúde e o cuidado com o corpo, o algoritmo invade com sua lógica implacável. Sistemas que deveriam auxiliar médicos a escolher tratamentos prioritários falham ao incorporar dados históricos enviesados, deixando pacientes já vulneráveis ainda mais expostos. Um algoritmo treinado com custos médicos anteriores ignora que muitos daqueles que menos gastaram não o fizeram por saúde melhor, mas porque o acesso lhes foi historicamente negado. Assim, a injustiça se multiplica silenciosamente, mascarada por métricas de eficiência.

O crédito financeiro, veículo crucial para a mobilidade social e econômica, também é influenciado por códigos aparentemente neutros. Limites de crédito, concessão de empréstimos e seguros são decididos por algoritmos que, treinados com bases históricas repletas de desigualdade, reproduzem padrões de exclusão e discriminação econômica. Mulheres, minorias étnicas e classes sociais desfavorecidas encontram, assim, barreiras invisíveis erguidas por sistemas cuja neutralidade técnica esconde um conservadorismo social estrutural.

Esses fenômenos lançam sobre nós uma sombra filosófica densa, questionando nossa crença na objetividade tecnológica e revelando que, talvez, jamais haverá neutralidade absoluta enquanto houver seres humanos por trás da criação. Cada escolha técnica é também ética, cada decisão algorítmica traz consigo um valor humano, uma visão do mundo. Não há máquinas neutras, há apenas máquinas silenciosamente permeadas por visões humanas.

A concentração desse poder algorítmico em mãos corporativas ou estatais gera desequilíbrios ainda mais profundos. Poucas empresas e poucos governos controlam vastas quantidades de informações sobre bilhões de indivíduos, criando assimetrias de poder e conhecimento sem precedentes. A transparência desaparece, obscurecida sob o manto da propriedade intelectual ou da segurança nacional. Assim, cidadãos se tornam vulneráveis a manipulações sutis, e a democracia, já fragilizada por bolhas e polarizações, vê-se ameaçada pela possibilidade real de manipulação maciça e oculta.

Nesse cenário, emerge com urgência a necessidade de um novo pacto social e ético com a tecnologia. Precisamos abandonar a ideia ilusória de neutralidade absoluta dos algoritmos e abraçar, conscientemente, a responsabilidade por sua criação e gestão. As ferramentas tecnológicas não são neutras, mas podem ser justas, se deliberadamente construídas assim. A humanidade precisa aprender a exigir transparência, auditabilidade e explicabilidade desses sistemas, não como um favor, mas como uma condição básica de dignidade social.

É essencial uma governança democrática e inclusiva, capaz de trazer para o debate não apenas técnicos e engenheiros, mas filósofos, sociólogos, antropólogos, juristas e, sobretudo, os indivíduos mais afetados pelas decisões automatizadas. Somente com a diversidade das vozes humanas será possível criar sistemas mais equilibrados e justos, reconhecendo explicitamente as limitações e os vieses que trazemos de nossas histórias e sociedades.

Nosso futuro, portanto, dependerá não apenas de avanços técnicos, mas principalmente da profundidade ética e filosófica com que abordarmos nossa relação com as tecnologias digitais. É um desafio imenso, mas inadiável. Estamos diante de uma bifurcação histórica: ou as sociedades se organizam democraticamente para controlar e direcionar os algoritmos rumo à justiça social e equidade, ou entregaremos nossos destinos à ilusão tecnocrática, arriscando criar um mundo onde a humanidade será governada por máquinas cegas aos valores humanos essenciais.

O futuro não está escrito em código matemático: está nas mãos daqueles que moldam as máquinas e, sobretudo, nas mãos daqueles que exigem transparência, justiça e humanidade daquilo que criamos. Nossa escolha será nossa herança.

*Zilan Costa e Silva, advogado e professor.

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