Frase absurda de Trump evidencia a diferença entre a lei e a regra social em uso
Muniz Sodré
Folha
“Eu poderia ficar parado na Quinta Avenida, atirar em alguém e ainda assim não perderia um eleitor” – essa frase recente de Donald Trump, perdida em meio à sua verborragia incivil, pode ser tomada como sinal forte da neobarbárie americana. Isso existe em larga escala e comprova-se em qualquer exame da cultura dos “rednecks” ou dos grupos de terrorismo interno.
Mas a frase tem conotações que se irradiam para além dos EUA, quando se presta atenção às entranhas do neofascismo emergente em outras partes do mundo.
UMA ARTIMANHA – O teor cru e grosseiro da afirmação esconde uma artimanha de sentido: ele não está dizendo que deixaria de ser preso ou eventualmente condenado, e sim que nenhum de seus eleitores se incomodaria com o crime.
De fato, num país de leis realmente aplicáveis, como é o caso dos Estados Unidos, ninguém escapa às mãos lavadas do arcabouço legal: ex-presidente ou não, ele seria arrastado aos tribunais. Ele afirma, porém, que fora do escopo formal da República, mas ainda na prática cotidiana da democracia, um assassinato aleatório daqueles seria assimilado por seus seguidores.
Emerge assim um tópico da alta reflexão, que é a diferença entre a lei e a regra. Lei é uma forma abstrata ou vazia, mas independente de seus conteúdos, de sua letra, ela envolve e coage o cidadão. É o que mostra “O Processo”, de Kafka: o protagonista, intimado e condenado por um crime que desconhece, cai absurdamente na trama legal.
LEI E REGRA – No limite, é indiferente conhecer ou desconhecer a lei, já que o imperativo é a obediência à forma. A regra, ao contrário, é familiar aos parceiros do jogo social (como, aliás, em qualquer jogo) e sua eficácia depende do reconhecimento comum.
A lei proíbe matar, mas isso só funciona quando corroborado pela regra comunitária.
A frase de Trump implica uma supressão da regra em que se apoia na vida concreta o respeito aos princípios humanos. Claro, isso pode estar nas leis, mas sua prática depende de uma educação, ao mesmo tempo privada e pública, capaz de levar a um consenso positivo.
À MARGEM DA LEI – A afirmação de um ex-dirigente nacional é perturbadora porque pode ser verdadeira: o fascismo, seja o antigo ou o emergente, traz no bojo a violação continuada (legal, moral, humana) do comum.
Isso pode lançar alguma luz sobre o fato obscuro de que, em outros países, personagens similares comunguem do espírito daquela frase, isto é, da aderência psíquica e política à violência impune. A arma e o gozo do assassinato constituem o móvel da busca de uma regra à margem da lei.
Afinal, o sonho de todo e qualquer fascismo é o crime perfeito.
Campanha pelo voto útil exibe incoerência de Lula, que negou apoio a Boulos em 2020
Merval Pereira
O Globo
O ex-presidente Lula está demonstrando, mais uma vez, que é uma metamorfose ambulante. Muda de opinião dependendo de a situação ser favorável a ele ou não. Agora se empenha em pedir o voto útil em seu nome já no primeiro turno da eleição e garante que sempre disputou eleição para vencer direto, o que nunca conseguiu, desde 1989, primeira vez em que concorreu à Presidência.
Mas sua visão sobre voto útil já foi diferente. Em 2020, na disputa pela Prefeitura de São Paulo, o PT se recusou a apoiar Guilherme Boulos, do PSOL, contra o então prefeito Bruno Covas. O candidato petista, Jilmar Tatto, ficou nos 6% dos votos e, mesmo assim, não abriu mão da disputa. Não tinha a menor chance de vencer, como aparentemente não têm hoje Ciro Gomes e Simone Tebet, mas se recusou a retirar seu nome em favor do candidato de esquerda mais bem colocado. Acabou vencendo o então prefeito tucano. O que demonstra que não havia voto suficiente na esquerda para vencer a eleição, no primeiro ou no segundo turno.
JUSTIFICATIVA ILUSÓRIA – Lula justificou-se dizendo que o primeiro turno é para votar no candidato preferido, no segundo faz-se o acordo. Hoje, o PT faz pressão para que eleitores de Ciro e Tebet votem em Lula no primeiro turno, com base em várias presunções: eles não têm chance de vencer; votar neles seria ajudar Bolsonaro a ir para o segundo turno; não votar em Lula é ser bolsonarista.
Querer ganhar no primeiro turno é um desejo normal de qualquer candidato, especialmente para Lula, que já sentiu a dor de perder duas vezes no primeiro turno para Fernando Henrique. Mas insinuar que os eventuais eleitores de seus adversários sejam fascistas, direitistas, bolsonaristas, enfim, não é uma atuação democrática. Nem inteligente, pois esses eleitores são os que poderão dar a Lula a votação extra para vencer no segundo turno.
Se Lula não vencer no primeiro turno, é porque não terá obtido votos suficientes para tal. Ciro tem razão de ficar irritado, pois seu eleitorado, majoritariamente de esquerda, é o principal alvo dos petistas para acrescentar “o tiquinho que falta” para vencer no primeiro turno.
ERRO POLÍTICO – É direito de qualquer candidato fazer campanha para vencer no primeiro turno. Considero essa abordagem, no entanto, um erro político do PT, porque, se não conseguir a vitória, além de animar o adversário, abaterá o moral de sua militância, que entrará desanimada no segundo turno, como aconteceu em 2006 contra o então candidato do PSDB, Geraldo Alckmin, que obteve surpreendentes 41% de votos no primeiro turno. Lula não conseguiu ganhar direto, embora tenha obtido 48,61% dos votos.
Ficou tão deprimido que desapareceu durante uma semana. Alckmin aceitou parar a campanha por esse período e deu fôlego para que o adversário se recuperasse. Teve menos votos no segundo turno que no primeiro.
No final, não acredito que Bolsonaro tenha votos para vencer no segundo turno, mas há divergências entre as pesquisas. Algumas dão de seis a oito pontos de diferença entre Lula e Bolsonaro, enquanto Datafolha e Ipec, que têm maior estrutura, dão de 13 a 15.
PESQUISAS DÍSPARES – A alegação é que a amostragem de segmentos está prejudicada porque o país não faz Censo há 12 anos, e os institutos têm dificuldade para chegar a uma amostra realmente representativa.
Uns trabalham com o índice de 57% de brasileiros na faixa de dois salários mínimos, outros com 38%, sem que haja números oficiais.
Uns usam pesquisas por telefone, os mais bem equipados fazem pesquisas presenciais. Essas explicações, no entanto, não invalidam o fato de as pesquisas de opinião influenciarem o ânimo dos candidatos e apoiadores.
TUDO É POSSÍVEL – Como as pesquisas mudam a expectativa da eleição a cada semana, podem criar ambiente psicológico negativo para Lula, se Bolsonaro chegar ao segundo turno com números mais favoráveis.
O certo é que, com o aumento da tensão, Ciro ficará neutro no segundo turno. Vai para Paris ou outro lugar, mas não apoiará Bolsonaro, nem fará campanha para Lula. Pela lógica, o PDT é partido de esquerda, e o eleitor de Ciro deverá votar majoritariamente em Lula num segundo turno, ou mesmo ainda no primeiro, se a campanha pelo voto útil for exitosa.
Mas, como nossa política partidária não tem lógica, uma parcela do eleitorado pode ir para a direita, como mostram as pesquisas. Outro fator relevante será a abstenção na votação, que neste ano, tudo indica, será maior devido ao medo da violência.
Nas memórias de DaMatta, os antropólogos eram considerados “espiões” ou “capitalistas”
Roberto DaMatta
O Globo
Dizem que “vivemos a vida”, mas, quando a vida nos vive, as frustrações assustam porque, sendo vividos pela vida, ela pouco liga para nossas reações. Freud chama isso de “princípio de realidade”, porque o mundo não está em sincronia conosco. Daí o desapontamento que nos faz sofrer. E, no entanto, sem isso não teríamos história. Seríamos tão vazios quanto um balão.
Pois a vida só se torna interessante quando se transforma numa singularidade — em alguma coisa que tem início, meio e fim. Ao sentir a dor das nossas feridas, escapamos da eternidade do nada.
ISSO É VIVER – Fui profissionalmente confundido algumas vezes. A profissão de etnólogo ou antropólogo social não tem uniforme ou emblema. Há apenas o sujeito estranho o suficiente para, numa comunidade diferente da sua, ser novidade ou causar suspeita.
Na minha experiência de antropólogo, iniciada aos 20 anos num Brasil dos anos 1960, não era fácil explicar essa vocação de “estudar costumes”. Porque ser etnólogo e viver em outras sociedades não é simples para quem realmente acredita em sistemas atrasados e adiantados. Entre os chamados “índios”, você é recebido como um bisbilhoteiro inocente ou indesejável.
Foi com tais desenganos que passei os meses de agosto, setembro, outubro e novembro de 1961 com os índios gaviões, no sul do Pará. No meu primeiro trabalho, acompanhado de Julio Cezar Melatti e ao lado de Roque Laraia e do falecido Marcos Rubinger, companheiros do Museu Nacional, fizemos uma jornada-odisseia do Rio a Goiânia para Porto Nacional, Carolina, Tocantinópolis, Cristalândia e Pedro Afonso, até Marabá, onde nos instalamos na única pensão da cidade, com sua latrina apavorante.
ENFIM, CHEGAMOS – Depois, Melatti e eu fomos até Itupiranga para chegar aos nativos. Fizemos uma marcha de 20 horas (com direito a dormida e medo em rede e mordidas de mosquitos). No fim da manhã, chegamos a quatro barracos cobertos de palha que formavam a aldeia dos gaviões, uns dos últimos falantes de língua jê virgens de estudo etnológico.
Em Marabá e Itupiranga, entrei no sistema local das deferências que definem as dobras entre superiores e inferiores no Brasil. Conhecemos o prefeito e outras autoridades em Marabá, o mesmo ocorrendo em Itupiranga, onde um anfitrião gentilmente nos recebeu em sua casa, ofereceu seu endereço e, quando estávamos isolados entre os “índios”, abriu sistematicamente todas as cartas que recebemos da família e do nosso professor do Museu Nacional.
A hierarquia fazia seu papel — éramos brancos, “ricos” e donos de estranhos aparelhos, praticávamos antropologia, essa alucinada profissão de “viver com caboclos”.
DO LADO ERRADO – Se os “índios” daquela época (como hoje) eram obstáculo à conquista da fronteira da castanha e do ouro, viramos patrões ambíguos porque jogávamos do lado errado e competíamos com os pretensos donos de castanhais, que, de fato, eram dos nativos.
Como é que esses jovens “doutores” poderiam estar interessados nesses “índios brabos” que viviam como animais? Era claro que nosso alvo era fazer prospecção de metais preciosos ou minerais radioativos. Nossa “brancura” e equipamento revelavam que, no fundo, éramos espiões capitalistas ianques tentando roubar as riquezas do nosso amado Brasil. Foi essa dúvida que justificou a violação de nossa correspondência.
Vistos como loucos e tratados como suspeitos e espiões em Marabá, fomos recebidos na aldeia do Cocal como visitantes exagerados porque lá ficamos por meses, vivendo a mesma vida dos nativos e aturando sua curiosidade agressiva. Ademais, não éramos catequistas.
DAR, PARA RECEBER – Fomos praticamente obrigados a dividir nossas provisões e aprendemos que aquela humanidade não se baseava em guardar, mas no distribuir e no dar para receber.
Passamos de doutores ricos, de espiões em busca de metais radioativos, a xeretas e sovinas…
Éramos multiclassificáveis (ou desclassificados), o que equivale a não ser em quase todos os lugares deste mundo. E define o antropólogo como um espião que, corre a lenda, no fundo é um bom sujeito.
Voto útil dificilmente dará vitória no primeiro turno, e Lula vai precisar de Ciro e de Simone
Silvio Cascione
Estadão
Na semana passada, Lula disse que nunca teve uma chance tão boa de ganhar uma eleição em primeiro turno, e que seus apoiadores não deveriam ter vergonha de admitir isso. Foi a primeira vez desde o início da campanha que o ex-presidente falou abertamente sobre buscar a vitória já no início de outubro.
Derrotar Bolsonaro no primeiro turno sempre foi o sonho dos petistas. Mas esse objetivo foi mantido com discrição por muito tempo para evitar o clima de “já ganhou” na campanha, e também não constranger candidatos como Simone Tebet, do MDB, de quem Lula espera receber o apoio em um eventual segundo turno.
COMBINAÇÃO IMPROVÁVEL – As chances de uma vitória de Lula em primeiro turno, porém, continuam baixas. Ela depende de uma combinação bastante improvável de dois fatores nessas próximas três semanas.
Lula precisa, em primeiro lugar, que eleitores de Ciro Gomes, Simone Tebet e outros candidatos decidam apoiá-lo já no primeiro turno.
Sabendo que a maioria dos eleitores desses candidatos rejeita Bolsonaro, Lula tem aumentado o apelo ao “voto útil”, antecipando o segundo turno. Lula, de fato, já conquistou uma parte do antigo eleitorado de Ciro, que não consegue repetir nas pesquisas o desempenho que teve nas últimas eleições (12,47% dos votos totais).
BOLSONARO FRACO? – Em segundo lugar, Lula precisa que Bolsonaro se enfraqueça daqui até o primeiro turno – e não há sinais de que isso esteja ocorrendo. É verdade que os comícios de 7 de Setembro não elevaram significativamente as intenções de voto no presidente.
Mas também é verdade que a base bolsonarista tem ficado cada vez mais convicta de sua decisão, e que a melhora da economia tem lentamente favorecido o atual mandatário, que cresce pouco a pouco nas pesquisas.
Se Bolsonaro não se enfraquecer em setembro, Lula precisará de uma quantidade muito grande de “voto útil” para vencer no primeiro turno – uma verdadeira onda, com Ciro e Simone caindo significativamente na reta final. Não é uma missão impossível. Mas, provavelmente, ainda teremos sete semanas de campanha, tempo para que Bolsonaro continue competitivo e com chances de virada.
Supremo força a barra para condenar Magno Malta, que tem direito à primeira instância
Fernanda Vivas e Márcio Falcão
TV Globo — Brasília
O ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), votou nesta sexta-feira (16) para tornar réu por calúnia o ex-senador Magno Malta em uma acusação apresentada pela defesa do ministro Luís Roberto Barroso. Em junho, Malta afirmou falsamente que o ministro Barroso “batia em mulher” e era alvo de processos no Superior Tribunal de Justiça (STJ) por conta de crimes previstos na Lei Maria da Penha.
A declaração foi feita em um evento público ligado a movimentos conservadores. Alexandre de Moraes é relator de uma queixa-crime, que é uma acusação formal apresentada à Justiça, quando há delitos contra a honra.
PLENÁRIO VIRTUAL – A calúnia consiste em atribuir falsamente a alguém a prática de um crime. O caso é analisado no plenário virtual do STF, com previsão de conclusão até o próximo dia 23.
Os ministros julgam se vão aceitar a acusação, transformando Magno Malta em réu. O voto de Moraes é nesse sentido – o que obriga o político a responder judicialmente pelas declarações. O ministro Edson Fachin acompanhou o relator. O placar até o momento é de 2 a 0 pela aceitação da queixa-crime.
Em seu voto, Alexandre de Moraes afirmou que a liberdade de expressão não pode ser interpretada como liberdade de agressão, nem como aval para destruição da democracia, das instituições, e da dignidade e honra alheias.
DISSE MORAES – O ministro também afirmou que a liberdade de expressão não é “liberdade de propagação de discursos mentirosos, agressivos, de ódio e preconceituosos”.
“A Constituição Federal consagra o binômio ‘LIBERDADE e RESPONSABILIDADE’; não permitindo de maneira irresponsável a efetivação de abuso no exercício de um direito constitucionalmente consagrado; não permitindo a utilização da ‘liberdade de expressão’ como escudo protetivo para a prática de discursos de ódio, antidemocráticos, ameaças, agressões, infrações penais e toda a sorte de atividades ilícitas”, declarou Moraes.
Ao afirmar que o Supremo é o órgão competente para analisar o caso, o ministro apontou que há conexões entre a conduta de Magno Malta e as investigações realizadas na âmbito dos inquéritos das fake news e da organização de milícias digitais, ambos sobre sua relatoria.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Assim como está ocorrendo com o ex-deputado Roberto Jefferson, o Supremo também extrapola suas atribuições ao processar o ex-senador Magno Malta. Nenhum dos dois possui foro privilegiado, por isso têm de ser julgados pela primeira instância, conforme recomenda a Procuradoria-Geral da República, na forma da lei. É por essas e outras que surgem denúncias que o Brasil está sob uma ditadura do Judiciário, pois isso não deixa de ser verdade. E o que o Supremo ganha com isso? Nada, rigorosamente nada. (C.N.)
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