segunda-feira, 12 de setembro de 2022

 

É preciso ter uma indispensável gota de ingenuidade para se ter esperança na democracia

TRIBUNA DA INTERNET | Luta pela democracia e combate à corrupção podem ser considerados irmãos de sangue

Charge do Duke (O Tempo)

Rodolfo Lobato
O Globo

O debate em torno das urnas eletrônicas potencializou a ideia de que um pequeno comitê, seja de militares, juristas ou empresários, possa guiar os rumos de sociedades complexas. Brotam do submundo discursos que retroalimentam três retóricas reacionárias, descritas por Albert Hirschman em “A retórica da intransigência” como as teses da perversidade, da futilidade e da ameaça.

Noções simples como o direito de escolha dos governantes, a igualdade civil e os direitos sociais parecem ser conquistas sólidas — mas apenas parecem. Determinados grupos, apesar de aderentes à economia liberal e às noções de progresso, relativizam tais conquistas. Esse movimento refratário às mudanças não é novo.

RISCOS ACIDENTAIS – Desde o século XVIII, para Hirschman, observou-se que os processos sociais não aconteciam sempre de forma intencional. Nascia, assim, uma tese que fortaleceu as críticas ao sufrágio universal, à igualdade civil e aos direitos humanos.

O argumento dos riscos acidentais da ação humana vislumbrava que até uma boa intenção poderia levar ao mal, ou despertar a estupidez coletiva. Eis a perversidade: situação em que qualquer ação para melhorar um aspecto da ordem social estaria fadada a piorar a situação que deseja remediar.

De outra lógica discursiva, e noutro contexto, piadas reafirmavam o truísmo de que todas as sociedades são essencialmente desiguais, violentas e desumanas. Nesse sentido, os argumentos a favor do Estado de Bem-Estar Social deveriam ser contestados como fraudulentos. E a tese da futilidade costuma ter como alvo os programas sociais, as políticas públicas ou os direitos trabalhistas. As boas intenções seriam inoperantes, ociosas ou fúteis.

AMEAÇAS E RISCOS – Por fim, a tese da ameaça “ponderava” que uma mudança no presente poderia ameaçar uma conquista anterior. Dessa forma, a democracia ou qualquer intervenção do Estado poderia pôr em risco a “liberdade”.

Sob essa lógica, o movimento feminista ou o direito das minorias ameaçaria as conquistas da igualdade civil. Tautologias que se desenvolvem no reino das palavras, isentas de contradições ou ambiguidades.

As teses da ameaça e da futilidade eventualmente se anulam e se misturam. Para uma das teses, a democracia seria uma farsa, enquanto, para a outra, seria um perigo para a “liberdade”. Mas essas lógicas também podem ser encontradas em críticos da esquerda. Por exemplo, quando censuram qualquer reforma ou inclusão social como uma ilusão, uma “máscara”, ou quando “denunciam” que o voto não alterará as estruturas sociais.

REALIDADE E ILUSAO – Hirschman critica essas posturas que não conseguem identificar a tensão entre as metas anunciadas de mudanças e a sua efetividade, o que é mais complexo do que o contraste entre máscara e realidade. A “chamada máscara pode arranjar um meio de subverter a realidade, em vez de escondê-la e preservá-la”, e seria bom encontrar pessoas menos amargas, com “umas gotas da ingenuidade que tanto denunciam…”.

 

A valorização dessas “gotas de ingenuidade” aponta para o resgate das utopias como uma esperança democrática no inesperado, na mudança. Há uma diferença entre um ceticismo sadio e a obsessão conspiratória, e o problema, definitivamente, não é o formato da urna, mas uma combinação de retórica perversa, fútil e ameaçadora.

Vivemos num país desigual, com cicatrizes abertas do colonialismo, racista e patriarcal. Enfim, há que reconstruir uma retórica afetuosa, historicamente localizada, em que as práticas do perdão e do amor reintroduzam a lógica do nosso velho profeta: “Gentileza gera gentileza”.

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