Orçamento do SUS está estagnado há 10 anos, e Lula não pode seguir se omitindo
Maria Hermínia Tavares
Folha
A sexagenária Ana (nome fictício), faxineira de profissão, padece há quatro anos de dores intensas, em consequência de uma cirurgia ortopédica malsucedida –que, por isso mesmo, precisa ser corrigida urgentemente com nova intervenção.
Ela é uma cidadã brasileira que a Constituição de 1988 tornou portadora do direito universal à saúde. Mas, na vida que lhe toca viver, Ana é só uma estatística: faz parte do contingente de mais de 1 milhão de compatriotas – 111.271 no estado de São Paulo, por exemplo – que formam a interminável lista de espera para cirurgias no SUS (Sistema Único de Saúde).
OBRIGAÇÃO SOCIAL – Em suas colunas nesta Folha, o médico Drauzio Varella volta e meia chama a atenção para outra estatística. Nesta, o Brasil figura como o único país com mais de 100 milhões de habitantes dotado de um sistema público de saúde universal e gratuito – que atende a mais de 70% da população.
Foram décadas de construção de um arranjo sofisticado que articula os três níveis de governo, bem assim os setores público e privado. Notável por sua capilaridade, a ele se acede por uma porta única, aberta a todos, em âmbito municipal.
O SUS é a mais fiel expressão do compromisso social inscrito na Carta. É também o indicador mais seguro das limitações de um sistema atenção à saúde que, embora assegure acesso universal, está longe de prover atendimento minimamente adequado a todos.
ORÇAMENTO ESTAGNADO – E não por acaso. Segundo estudo do Ieps (Instituto de Estudos para Políticas de Saúde), o orçamento federal para saúde está estagnado desde 2013. Os investimentos caíram.
De cada R$ 5 aplicados, apenas R$ 1 se destina a despesas não obrigatórias, porém indispensáveis; deste, R$ 0,35 vêm de emendas parlamentares, que se orientam antes pela lógica eleitoral do que pela avaliação das prioridades.
Custeio de administração, pagamento de pessoal e vigilância sanitária consomem a maior parte dos recursos, sem margem para a expansão do sistema.
ESTÁ NAS ÚLTIMAS – Em recente reunião, o Fórum dos Partidos Progressistas – que representam o braço esquerdo do governo —, concluiu que o efeito da reciclagem dos programas sociais das administrações anteriores do PT está nas últimas, sendo necessário criar com urgência novas marcas.
Se fosse consultada, a cidadã aqui chamada Ana provavelmente diria que, antes de inventar novas modas, seria bom instalar o SUS no centro das prioridades do governo – e fazer dele, na medida do possível, um instrumento de garantia efetiva de cidadania social.
Para começar, tirando-o de vez do encardido balcão onde se negociam cargos em troca de apoio ao governo de custosa coalizão.
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NOTA DA REDAÇÃO DO BLOG – Excelente e preocupante artigo. Lula sempre se emociona e até chora quando fala nos problemas do povo. Mas procede como se não tivesse nada a ver com o decadência do SUS, que ele considera “o melhor do mundo”. Sinceramente, é muita desfaçatez. (C.N.)
Aprovação de ‘amigo de Lula’ para STF escancara a promiscuidade institucional
Carlos Newton
Conforme já se esperava, o Senado aprovou nesta quarta-feira, por 58 votos a 18, a indicação de Cristiano Zanin, 47 anos, para integrar o Supremo Tribunal Federal. É mais uma comprovação da promiscuidade institucional existente no país, que transformou o mais importante tribunal num mero braço jurídico de Lula da Silva.
Dos onze integrantes da Supremo Corte, apenas quatro foram indicados em governos fora da influência direta do criador do PT — o decano Gilmar Mendes (governo FHC), Alexandre de Moraes (governo Temer), Nunes Marques e André Mendonça (governo Bolsonaro).
MAIORIA GARANTIDA – Como os demais foram nomeados por Lula ou Dilma Rousseff, o PT tem maioria tranquila de 7 votos a 3. Com um detalhe importantíssimo — o ministro Gilmar Mendes, que manda e desmanda no STF, já se confessou amigo pessoal do presidente Lula, a ponto de frequentar churrasco no Palácio do Alvorada, acompanhado de Alexandre de Moraes, que também virou amigo do presidente e almoçou com ele na véspera da nomeação dos novos ministros do Tribunal Superior Eleitoral, por ele presidido.
Usufruindo essa proximidade nada republicana, o presidente Lula na verdade conta no Supremo com uma maioria de 9 a 2, está tudo dominado, como se diz atualmente.
E a Constituição é atropelada a cada indicação de novo ministro para o STF, porque a exigência de notório saber jurídico já foi parar na lata do lixo da História, embrulhada em diplomas fajutos de Salamanca, vejam a que ponto chegamos.
PROMISCUIDADE – Vive-se no Brasil uma era de promiscuidade institucional jamais vista na História da República, pois durante o Império o notável saber jurídico jamais foi descumprido, não havia desprezo às normas constitucionais.
Em meio a essa realidade, não causa surpresa que o Supremo e demais tribunais superiores tomem decisões meramente políticas, à margem da lei, como a transformação do Brasil no único país da ONU (são 193 nações) que não prende criminoso após condenação em segunda instância, uma decisão sob medida para libertar Lula em 2019.
Dois anos depois, a pretexto de evitar que o presidente Bolsonaro se mantivesse no poder, o mesmo Supremo devolveu a Lula os direitos políticos, criando a competência territorial absoluta para processos não-imobiliários, uma possibilidade jurídica inexistente no Direito Universal, absolutamente insólita e surrealista.
NOVA FASE MEDIEVAL – Com essas decisões políticas, a Suprema Corte possibilitou que o Congresso também avançasse na aprovação de leis que afrouxassem o combate à corrupção, para consagrar a impunidade das elites.
Assim, nossos três Poderes, que a genialidade do Barão de Montesquieu instituiu independentes entre si, passaram a funcionar em regime de total promiscuidade, perpetuando os privilégios dos cargos mais elevados do serviço público, civis e militares, para aprofundar cada vez mais as desigualdades sociais.
Assim, a diferença entre os maiores e menores salários só faz aumentar, ao invés de diminuir, num processo verdadeiramente desumano, que envergonha o Brasil como nação.
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P.S. 1 – Na noite desta quinta-feira, o professor Ives Granda Martins estará na Escola Superior de Guerra, fazendo um dificílimo contorcionismo jurídico para mostrar que não apoiava o golpe e a intervenção militar, mediante o “poder moderador” das Forças Armadas por ele proclamado. Vai se sair bem, possui talento para tanto, basta apenas fazer uma nova narrativa e reinterpretar o que defendera.
P.S. 2 – No entanto, espera-se que o renomado jurista não mude sua narrativa sobre o retrocesso jurídico em que o país está mergulhado, devido às ilegais decisões políticas do Supremo. Ele sabe que isso tem de acabar. Mas quem se interessa? (C.N.)
É preciso determinar no Brasil quem vai defender os defensores da liberdade
Conrado Hübner Mendes
Folha
O Produto Interno da Brutalidade Brasileira (PIBB) e o subdesenvolvimento não se improvisam, diria Nelson Rodrigues. Não ocorrem por acidente, por falta de sorte ou de oração. O projeto de crescimento permanente do PIBB é inteligente, juridicamente facilitado, constitucionalmente disfarçado, socialmente alimentado.
Cientistas sociais há muito demonstram os dispositivos de exploração da vulnerabilidade e da discriminação. Lá nas periferias territoriais e simbólicas onde conquistas jurídicas não chegam e a desigualdade se reproduz e perpetua.
BELA TENTATIVA – O texto da Constituição de 1988 tentou resolver definitivamente pelo menos alguns conflitos de força entranhados na sociedade. Aos direitos da criança e do adolescente, por exemplo, mandou dar “absoluta prioridade” quando outros interesses tentarem competir (art. 227). A “prevalência dos direitos humanos” e a “redução das desigualdades” não são negociáveis numa mesa de conciliação (arts. 3º e 4º).
Em nenhuma circunstância alguém poderia sofrer tortura e tratamento degradante (art. 5º). Povos indígenas têm “direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam”, independentemente de marcos temporais que ministro do STF tire do fundo de seu instinto colonial de pacificação no porrete (art. 231).
Mas resolver no mundo das leis não resolve na vida real. Constatar como autoridades jurídicas e seus argumentos foscos podem contribuir mais para a exploração do que para a emancipação faz muito aluno e aluna de faculdades de Direito abandonarem o curso no meio do caminho.
JAMAIS DESISTIR – Essa perda da inocência sobre os limites do Direito e da Constituição, quando seus operadores não estão à altura, não justifica que renunciemos a seu potencial. Mesmo quando o presidente indica para o mais alto tribunal do país seu advogado pessoal, que se tornou conhecido não pelo que pensa nem pela biografia, mas pelo serviço prestado ao presidente.
Lutar contra essa engrenagem histórica requer ação estatal e social concertada. Políticas públicas e sociedade civil ativa, portanto. Defender a liberdade não só de grupos e indivíduos vulneráveis, mas dos próprios defensores da liberdade é parte elementar desse esforço.
Dias atrás o governo federal instalou o “Grupo de Trabalho Técnico Sales Pimenta” (decreto 11.562). Tem o papel de contribuir na “operacionalização da Política Nacional de Proteção aos Defensores de Direitos Humanos, aos Comunicadores e aos Ambientalistas”.
POLÍTICA PÚBLICA – Tínhamos uma política pública precária para proteger quem defende liberdades. Bolsonaro a desmontou. O novo governo tenta recriá-la, sob liderança do ministro Sílvio de Almeida.
Numa sociedade como a brasileira, não se defendem direitos humanos impunemente. O cenário pós-governo Bolsonaro é tão ruim quanto se podia imaginar de quem prometeu enviar militantes para a ponta da praia. A radiografia da devastação aparece no relatório “Na linha de frente: violência contra defensoras e defensores de direitos humanos no Brasil” (Terra de Direitos e Justiça Global).
O texto examina uma amostra de casos de violência registrados entre 2019 e 2022. Classifica a violência em oito tipos: ameaça, agressão física, assassinato, atentado, criminalização, deslegitimação, importunação sexual e suicídio em decorrência do contexto de violação de direitos.
VEJAM OS NÚMEROS – Entre os 1.171 casos mapeados, foram 169 assassinatos (15%), três por mês, 140 deles de pessoas que lutavam por direito a terra, ao território e pelo meio ambiente. Foram 579 ameaças (50%). As regiões Norte e Nordeste, locais de conflitos fundiários mais agudos, concentram quase 65% das ocorrências.
Um terço das pessoas assassinadas foi de indígenas. A morte de indígenas em razão de conflitos territoriais que a Constituição resolveu, mas a hermenêutica ruralista bagunçou, não despertou o senso de urgência do STF, que há anos posterga decisão sobre marco temporal, proteção jurídica da qual povos indígenas dependem.
Entre intimidações verbais e processos judiciais, agressões físicas e morte, defensores da liberdade pedem ajuda. Não só por eles.
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